Os ponteiros do relógio marcam meia noite. Entre as trevas do quarto, a mão branca e enrugada empunha a seringa, as cortinas da janela agitadas pelo vento que sopra lá fora. A agulha penetra lentamente a veia do braço, fazendo com que a morfina entre na corrente sanguínea. Há um breve momento de tontura. Depois, resta apenas o alívio e o conforto, até que o corpo volte ao seu estado normal.
A companhia das sombras e do vício não era uma estranha para aquele senhor. Dizem que ele começou a usar a morfina para amenizar as dores causadas por ferimentos sofridos na Primeira Guerra, quando integrava as fileiras do exército austro-húngaro. Mais tarde veio a imigração para os Estados Unidos e a retomada da carreira de ator. Nos primórdios do cinema falado, Bela Lugosi ficaria famoso ao interpretar o Conde Drácula, em filme de 1931.
Entretanto, após mais alguns filmes de relativo sucesso, a carreira de Lugosi entrou em declínio. Os anos passavam sem que ele conseguisse papéis dignos do seu valor, e Lugosi acabou se tornando uma espécie de refém de Drácula, invariavelmente forçado a trabalhar em produções de terror de baixo orçamento.
Endividado e acossado pelo vício, Lugosi acabou sendo redescoberto por Ed Wood, um diretor de filmes B e antigo fã do ator húngaro. Em um momento em que muitos pensavam que Lugosi já estivesse morto, o jovem Wood procurou incluí-lo em suas produções, quem sabe devolvendo um pouco de calor humano e a luz dos holofotes a quem havia sido um dos grandes vultos de Hollywood.
Infelizmente para Bela Lugosi as cortinas se fecharam sem que ele conseguisse receber pela última vez o clamor da multidão. Após ficar um período internado para tratar do vício, em 1956 o velho astro faleceu vitimado por um ataque cardíaco.
O desterro enfrentado por Lugosi também foi sentido na pele por Cartola. No ano em que o ator saiu de cena, não se sabia ao certo se o grande compositor e um dos fundadores da escola de samba Mangueira estava vivo ou morto. Por um capricho do destino, certa noite Cartola, que trabalhava lavando carros em uma garagem, acabou sendo descoberto pelo jornalista Sergio Porto em um bar de Copacabana.
Emocionado, Porto, que também utilizava o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta em seus textos, escreveu uma coluna revelando o paradeiro de Cartola, retirando, assim, o manto de olvido que cobria o sambista. Novamente um favorito entre o grande público, Cartola atravessou a década de 1960 em alta, até gravar o seu primeiro LP, com 66 anos de idade, em 1974.
Para o artista, especialmente aquele que um dia foi tocado pelas carícias do sucesso, o ocaso pode significar um golpe fatal. Após experimentar grande popularidade entre os jovens durante a década de 1970, o bardo nordestino Raul Seixas viveu dias de esquecimento. O autor de “Metamorfose ambulante” e “Al Capone” enfrentava, inclusive, sérios problemas de saúde, agravados pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
Como quem retira um pai do asilo, o roqueiro Marcelo Nova apareceu na vida de Raul, de quem era um ferrenho admirador. Cuidando até mesmo para que não faltasse o pão de cada dia na mesa do eterno “maluco beleza”, Marcelo compôs novas canções com o seu mestre, gravando um disco e levando Raul a excursionar consigo.
Apesar de debilitado fisicamente, Raul mais uma vez mesmerizou as plateias com o seu carisma e picardia. Cidade após cidade, palco após palco, a guitarra em punho tocando os acordes de “Sociedade alternativa”, Raulzito mostrava ao mundo que ainda era capaz de brilhar.
Mas era tarde demais. O lindo e breve sonho acabou em agosto de 1989, quando Raul foi encontrado morto em seu apartamento em São Paulo, vitimado por uma parada cardíaca.
Comparável a um golpe de sorte, o renascimento tardio e inesperado vivido por Raul, Cartola e Bela Lugosi, nem sempre acontece. Iludido com os louros da fama e o sol dourado que brilha no topo da montanha, o artista segue inocente atrás do seu destino. Um destino insensível, que costuma repousar no interior frio e triste de uma ostra azul no fundo do oceano.