Greenwich Village, Nova Iorque, alvorecer do século XX. Um menino de calças curtas procura entre as estantes da biblioteca pública. As lombadas dos livros têm algo que fascina, os volumes dispostos lado a lado, através de um longo e silencioso corredor. Na ponta dos pés, o garoto escolhe um livro com letras douradas impressas sobre a capa. As ilustrações e a narrativa logo capturam o interesse do garoto, e ele apanha o exemplar. Satisfeito com a sua escolha, o livro embaixo do braço, o leitor mirim deixa a biblioteca, da qual era sócio, em direção ao ar fresco da manhã. A essa hora, seu pai carregava sacos pesados nas costas, concentrado em seu ofício de estivador nas docas do rio Hudson. John era um imigrante irlandês e um grande fã de boxe. Mas a razão pela qual ele comprou um par de luvas barato para o seu filho era outra. Brigas de rua eram comuns na vizinhança, e John sabia que, se tivesse domínio sobre seus punhos, o pequeno Gene não seria um alvo fácil para as gangues que proliferavam na metrópole.
Entre o couro das luvas e o couro das capas dos livros, o pequeno Gene, de um modo todo seu, optou pelos dois. Na escola, o rapaz extravasava o seu gosto pela literatura, participando de peças teatrais como o “Mercador de Veneza”, de Shakespeare. Sempre metódico, Gene decorava as falas do personagem Antonio com afinco. Ao mesmo tempo, o rapaz ia aprendendo as rotinas do boxe. Embora fosse dono de um golpe forte e rápido, o seu maior prazer durante as lutas era esquivar as investidas dos oponentes. Anos mais tarde, quando serviu como fuzileiro naval durante a Primeira Guerra Mundial, na França, o boxe assumiu um relevo maior em sua vida. De volta ao lar, Gene abraçou o boxe profissional, trilhando uma carreira sólida até amealhar o cinturão dos pesos pesados. Para tanto, Gene derrotou o lendário Jack Dempsey, na Filadélfia, em 1926, e também na revanche entre eles, disputada no ano seguinte, em Chicago.
Graças a esse feito extraordinário, Gene Tunney escreveu seu nome na história da nobre arte. Apesar disso, ele nunca foi um campeão popular. Como uma sombra negra pairando sobre a sua figura atlética e vencedora, o gosto pelos livros e pela leitura fazia de Gene Tunney uma espécie de “persona non grata” dentro do mundo do boxe.
A introspecção dos livros como contraponto ao combate feroz dos ringues e arenas também fazia parte da rotina de Kareem Abdul Jabbar. Em suas memórias, Magic Johnson, que atuou ao lado de Kareem pelo time do Lakers, nos anos 1980, conta que o veterano pivô costumava levar consigo livros para ler no vestiário antes dos jogos. Alheio à tensão e ao nervosismo, Kareem mergulhava em volumes de história, biografias, ou simplesmente em romances de Raymond Chandler. O seu nível de concentração era algo que ia além da compreensão dos colegas de time, e, mesmo quando não estava lendo, era difícil para os outros penetrarem no mundo interior do gigante. Dentro de quadra, Kareem dominava as partidas, abrindo a sua caixa mágica de truques e artifícios. Enterradas, arremessos de curta distância, bandejas, tocos, e principalmente o gancho, fizeram de Kareem um astro de grandeza maior dentro do basquete mundial.
Assim como Kareem, o craque Tostão passou bons momentos no ambiente silencioso das bibliotecas. Enquanto o virtuose da bola laranja costumava frequentar as bibliotecas públicas da sua juventude em Manhattan, Tostão, após pendurar as chuteiras precocemente, aos 26 anos, tinha o hábito de estudar na biblioteca universitária da UFMG. A medicina foi a profissão escolhida pelo atacante quando ele trocou o mundo frenético da fama e do futebol pelo desejo de aprender e conhecer. O seu objetivo agora era conquistar o diploma, uma empreitada tão ou mais difícil que marcar gols e erguer taças de campeão. No lugar de Raul, Piazza, Dirceu Lopes, Evaldo e Natal, integrantes do formidável time do Cruzeiro dos anos 1960, os companheiros de Tostão daqui para a frente seriam os livros. Após a formatura, Tostão exerceu a profissão, primeiro em um consultório e depois como professor. Para o cidadão Eduardo Gonçalves de Andrade (nome de batismo de Tostão), as horas transcorridas entre as estantes e mesas da biblioteca não foram em vão.
É interessante como, mesmo na época de jogador, Tostão prezava a companhia dos livros. O sagaz artilheiro era um personagem diferente, que gostava de levar livros de Clarice Lispector e Herman Hesse para a concentração. Enquanto a maioria do elenco cruzeirense passava o tempo jogando baralho ou sinuca, Tostão se dedicava à leitura prazerosa dos seus autores favoritos. O comportamento do craque chamava a atenção dos seus colegas de time, e Tostão passou a ser visto como uma espécie de “intelectual”.
Nada mais compreensível. Para muita gente o mundo dos livros e das bibliotecas é algo sombrio, tedioso e sem sentido. Entretanto, penetrar nas brumas desse mundo misterioso não é nenhuma missão impossível. Basta enxergar com o coração, permitindo que a luz da ciência e da literatura dissipe as trevas que existem dentro de nós mesmos. Não é preciso ser um campeão para visitar uma biblioteca, mas, ao fazê-lo, nos transformamos em um deles, dignificados pela experiência que liberta e humaniza.