Batina negra

0

Desde que o Papa Francisco assumiu o trono da igreja católica em Roma, o San Lorenzo ganhou fama e prestígio em razão deste ilustre torcedor. O que talvez muitos não saibam, é que foi sob os auspícios de um outro padre que o clube de Buenos Aires deu os seus primeiros passos.

No início do século passado, um grupo de jovens portenhos criou um time chamado “Los Forzosos de Almagro”. Vendo que a turma jogava as suas peladas em terrenos baldios sem as condições ideais, e, para que os garotos ficassem mais próximos da sua paróquia, o padre Lorenzo Massa aplainou e limpou um campo lindeiro ao oratório San Antonio.

Além disso, providenciou o fardamento para o time, conquistando a admiração e o carinho dos atletas juvenis. Na assembleia de fundação do clube, em abril de 1908, o antigo nome foi abandonado, e os rapazes decidiram rebatizar o time prestando uma homenagem ao seu mentor. O padre aceitou, desde que a honraria fosse estendida ao santo de mesmo nome.

A partir de então, o San Lorenzo iniciou uma longa trajetória, cheia de altos e baixos, até se firmar como um dos grandes clubes da Argentina. O primeiro título da era profissional veio em 1933, impulsionado pelos craques Arrieta e García. Em 1946, mais um campeonato, e o surgimento do célebre trio de ataque formado por Farro, Pontoni e Martino.

E como esquecer do fabuloso artilheiro José Sanfilippo, integrante da equipe campeã de 1959? Seu faro de gol fora do comum fez de Sanfilippo uma presença constante também na seleção argentina daqueles tempos.

Entre tantos canecos, craques e emoções, o San Lorenzo recebeu diversos apelidos. “El Ciclon”, por exemplo, foi plasmado pelo jornalista Hugo Marini, depois da campanha avassaladora que levou ao título de 1933.

Vale a pena lembrar que o maior rival do San Lorenzo é justamente o Huracán, clube baseado no bairro vizinho de Parque Patrícios. Dessa maneira, não seria nenhum disparate chamar o derby da zona sul de Buenos Aires de “clássico dos ventos”, opondo o ciclone e o furacão em uma luta descomunal entre duas forças da natureza e do futebol.

O mote de “corvos”, por sua vez, surgiu graças à inconfundível batina preta usada pelo padre Lorenzo Massa nos primórdios da instituição. A roupa, de tecido grosso com grandes botões redondos, parecia ter vida própria, flanando como um anjo negro nos treinos e jogos do time. Uma indumentária sinistra, bem diferente do hábito branco do Papa Francisco, diga-se de passagem.

Aliás, se pararmos para pensar, não seria lógico que o Papa, como bom cristão, torcesse para que os atletas do San Lorenzo fossem mais solidários com os adversários dentro de campo? Afinal, segundo reza a Bíblia, é dando que se recebe, e Jesus ofereceu a outra face depois de um tapa.

Imaginemos a cena: o goleiro Torrico deixando as bolas passarem, uma após a outra, sem esboçar reação, contente em fazer o bem ao próximo (no caso a torcida do time rival). Em seu quarto sem luxos no Vaticano, o Papa, ao pé do rádio, sorri com todos os dentes, satisfeito com a atitude de desapego praticada por seus ídolos. Como devoto de São Francisco de Assis, ele não deseja a riqueza, nem taças douradas de campeão.

Trata-se de um cenário muito bonito, mas pouco provável no mundo real. Até porque, se folhearmos as páginas da Bíblia outra vez, encontraremos a passagem na qual Jesus expulsa os cambistas do templo com um chicote. Uma atitude muito mais adequada às regras e costumes do futebol dos nossos dias, onde a força bruta é tão necessária quanto a habilidade para aplicar dribles e fintas desconcertantes.

E onde uma batina negra, com algo de maligno e sombrio em suas costuras, pode ter significados tão profundos quanto aqueles de uma túnica alva, com suas mensagens de paz, amor e fraternidade.

*texto publicado originalmente no livro “O louco no espelho” (Bestiário, 2017).