Após a vitória do Internacional sobre o Bahia, ontem, no Beira Rio, lembrei de uma crônica do meu segundo livro, “Crônicas douradas” (Maquinária, 2010). Ela fala, apoiada na semelhança dos uniformes principais de Bahia e Nacional de Montevidéu, de times que foram, em algum momento, carrascos do Inter.
Quis o destino que os três clubes, mais o Nacional de Medellin, estivessem em um mesmo grupo na Libertadores deste ano.
Depois de partidas épicas, o Inter logrou eliminar os seus algozes de outrora. Talvez não tenha sido propriamente uma vingança, tendo em vista a magnitude das decisões nas quais ele foi vencido no século passado.
Mas, pelo menos, o onze colorado pôde, junto com a torcida, fazer um exercício de exorcismo contra certos fantasmas.
Arautos da desilusão
No princípio era o Gauchão. Uma competição que, para os dois maiores times do Rio Grande do Sul, Inter e Grêmio, foi perdendo o valor com o passar do tempo. Como uma criança que vai se desinteressando de um brinquedo velho, esses clubes passaram a ter novas ambições.
Em 1959, foi criada a Taça Brasil, uma competição nacional que reunia os vencedores dos campeonatos regionais. Nenhum clube sulino venceu esse torneio, que teve apenas dez edições.
Depois vieram o Robertão e o Campeonato Brasileiro, disputado pela primeira vez em 1971. No caso do Inter, a torcida não teve que esperar muito por esse título. E o sonho passou a ser a Taça Libertadores da América.
Em 1980, recém-sagrado tricampeão brasileiro, o Colorado era uma máquina bem-azeitada e a massa começou a construir os seus castelos. O técnico Enio Andrade dispunha dos elementos certos para alcançar a meta tão cobiçada, como o garoto prodígio Mauro Galvão na zaga.
Ou o escorregadio e talentoso Jair, um dos estandartes do meio-campo rubro. Jair tinha futebol nas veias. Filho do médio Laerte, que foi campeão carioca em 1956 com o Vasco da Gama do técnico Martin Francisco, Jair cresceu convivendo com craques.
Agora, adulto, ele trocava passes com o maestro Falcão, figura consagrada e nome certo na seleção brasileira. No Inter, Falcão ajudava também fora das quatro linhas. Foi dele a iniciativa de sugerir a contratação de outro genial jogador, o canhoto Mario Sergio, que estava no Rosário Central da Argentina. Pícaro e intempestivo, Mario costumava deixar os companheiros na cara do gol, arrombando as defesas inimigas.
E foi assim que o Inter chegou à final da Libertadores contra o Nacional de Montevidéu. Os píncaros da glória estavam mais perto do que nunca. Porém, o adversário seria um osso duro de roer. Seu técnico, Juan Mujica, era um veterano de muitas batalhas. Ele mesmo havia vestido a camisa celeste na copa do México de 1970, ao lado do jovem Victor Espárrago.
Uma década depois, Espárrago era o caudilho que comandava o Nacional dentro de campo. No primeiro jogo em Porto Alegre, o onze oriental amordaçou o Inter e o resultado foi um empate sem gols. A ilusão da chusma colorada se desvaneceu um pouco, mas continuava viva.
O segundo jogo foi no Estádio Centenário, moldura de tantas decisões dramáticas ao longo de meio século de futebol. A noite é fria e escura, a chuva açoita os jogadores sem trégua.
Falta a favor do Nacional. Prepara-se Julio César Morales para a cobrança. O couro atravessa a área do Inter até ser golpeado pela cabeça de Victorino e morrer no fundo das redes do goleiro Gasperin.
Era o fim do sonho. O responsável permanece vivo nos pesadelos da torcida rubra até hoje: Valdemar Victorino, um jogador da mais fina estirpe uruguaia e que se espelhou em Luis Artime e Fernando Morena para moldar seu futebol.
A torcida colorada foi obrigada a resignar-se. Esperando pacientemente que a maré mudasse a seu favor, ela viu com esperança o surgimento de um time promissor em 1988. Ainda mais quando o quadro escarlate abateu heroicamente o Grêmio, seu rival maior, nas semifinais do Campeonato Brasileiro. Sua formação tática com três atacantes, os ponteiros Maurício e Edu e o centroavante Nilson, era uma espécie de canto de cisne de uma época.
O adversário da decisão seria o Bahia. Um time jovem e competente, que havia eliminado o Fluminense na corrida pelo título. O técnico Evaristo de Macedo tinha no meio-campista Bobô o seu principal jogador.
Moço de Senhor do Bonfim, Raimundo Nonato Tavares da Silva foi revelado pela Catuense e chegou ao Bahia em 1986. A partir de então, Bobô honrou como poucos a tradição da camisa tricolor, fazendo a alegria de ilustres simpatizantes, como o cantor Moraes Moreira, por exemplo.
A partida de ida foi em Salvador. O Inter saiu na frente, através de Leomir. A partir daí o Bahia, favorecido pela grama alta da Fonte Nova, passou a comandar o jogo, graças à figura esguia de Bobô. Seriam dele os dois tentos da virada nordestina. O primeiro, aparando de cabeça um cruzamento de Zé Carlos, deixando atônito o goleiro Taffarel. O segundo, após uma confusão dentro da área do Inter em que a bola se ofereceu para ele.
Nesse instante, Bobô e Victorino pareciam o mesmo, dentro de uma camisa branca e um calção azul, destruindo implacavelmente a quimera almejada pela torcida colorada.