Saiba como eles tiraram o glúten do cardápio na cidade de colonização italiana da Serra Gaúcha
No almoço massa ao molho de quatro queijos. No café da tarde pão com presunto e queijo. No jantar pizza. Essa é uma rotina recorrente para moradores da cidade de Bento Gonçalves, localizada na Serra Gaúcha. Comidas que contém farinha de trigo são comuns na cultura italiana, mas há quem não possa consumi-los. Os celíacos não devem comer alimentos que possuem trigo, centeio, cevada e malte. A doença é uma reação exagerada do sistema imunológico ao glúten. “Não é o glúten que causa a doença. O corp é que o reconhece como ameaça”, afirma o gastroentereologista Jerônimo Oliveira.
O médico conceitua a doença celíaca como uma resposta inflamatória ao glúten no organismo, que recruta as células de defesa para atacar a substância e acaba prejudicando o intestino. Provocada por um gene específico, a reação pode estar relacionado com a exposição do paciente ao glúten. Segundo Oliveira, há muitos estudos nessa área.
A bancária Salete Ferrari foi diagnosticada na mesma época da morte da sua mãe. “Sinto que a doença foi do meu psicológico”, acredita. Após o descobrimento da intolerância à lactose, continuou passando mal quando almoçava nos restaurantes de buffet a quilo e então, descobriu que não podia consumir glúten. Hoje, eventualmente faz refeições fora de casa. “As reações no intestino fazem com que a superfície de absorção das células fique diminuída, provocando também a falta da enzima lactase”, explica Oliveira.
Descendente de família italiana, Janaíne Arioli descobriu a doença há três anos. A perda de 10 quilos fez com que a estudante procurasse inicialmente uma nutricionista para regular a alimentação. Após passar por dietas e profissionais, ela chegou ao gastroentereologista que lhe deu o diagnóstico. “A alimentação não é o tratamento, porque não tem cura, mas é a admnistração da doença”, relatou. Para a nutricionista Juliana Carvalho, a comida é uma identidade cultural da colonização. “Tudo que fazemos é voltado para a comida. É uma característica humana, mas na cultura italiana ela é ainda mais forte”, revela.
Filha mais velha, Janaíne conta que o pão era muito presente na sua alimentação antes da descoberta da doença. Hoje, ela substitui o item por tapioca e salgados à base de farinha de arroz. Às vezes, compra pão sem glúten em lojas de produtos naturais. “Pago o dobro que o pão normal, então prefiro substituir por outra comida”, conta. As refeições diárias são à base de carne e arroz, mas eventualmente a massa entra no cardápio da família. Nesses dias, a mãe da estudante faz outra comida para ela ou compra a massa sem glúten. “Existem alguns produtos que são acessíveis como a massa, vendida pelo mesmo preço da normal nos supermercados”, conta. Segundo a nutricionista, a estrutura montada para produção desses alimentos é cara e esse valor acaba sendo repassado para o consumidor.
A gastronomia de Bento Gonçalves é conhecida pela grande quantidade e qualidade das pizzarias. A menina de 21 anos considera que sair para comer é o ponto mais difícil da doença e reconhece que sua vida social foi muito afetada porque, na maioria das vezes, é convidada para comer pizza. “Não é todo mundo que aceita ir a um lugar diferente só porque uma pessoa não pode comer”, desabafa. Segundo a vice-presidente da Associação Brasileira dos Celíacos do Brasil no Rio Grande do Sul (Acelbra-RS), Ester Benatti, o celíaco geralmente se sente isolado porque não tem lugar para sair e, por vezes, acaba não sendo convidado para os eventos em decorrência da sua restrição alimentar. Janaíne tem medo de comer fora de casa em razão da contaminação cruzada. “Tu acaba se obrigando a cozinhar se tu quiser comer”, esclarece.
Por meio de de grupos de apoio no Facebook, a estudante descobriu receitas e a Acelbra. Segundo a Associação, cerca de 1% da população mundial pode ter a celíaca. O levantamento de dados exatos é difícil em razão do grande número de pessoas que estão na sombra em filas de médico e diagnósticos. Segundo Ester, a Associação busca a conquista de direitos e a divulgação da doença para a população e profissionais da saúde. “Somos uma minoria que precisa de acolhimento”, alega. O principal atendimento é às pessoas do Interior. “Em Porto Alegre, existe um sentimento de pertencimento. No Interior, você é sozinho no mundo”, aponta a vice-presidente. Em uma conversa com o gastroentereologista que a diagnosticou, a comerciante Verônica Emanueli o está verificando a possibilidade de criação de um núcleo de apoio para celíacos em Bento Gonçalves, por meio da Acelbra. Segundo ela, a cultura italiana é toda envolvida com o glúten, mas, ainda assim, há vários lugares para se comprar produtos na cidade. “É difícil achar comida pronta nos eventos aqui da cidadem, não temos restaurantes preparados para nos atendermos”, revela.
É o caso da loja dos irmãos Edegar e André Brandelli, donos de uma franquia de produtos a granel que oferece várias alternativas aos produtos com glúten. Acostumados à experiência anterior de trabalhar em supermercados, André ficou surpreso com a quantidade de pessoas com restrição alimentar em Bento. “Não imaginei que fossem tantas”, nota. A procura por produtos sem glúten e lactose é alta em Bento, segundo Edegar. “Quem começa a consumir busca cada vez mais”, alega. Cerca de 10% dos produtos da loja são para celíacos, em sua maioria biscoitos e farinhas. “Eles procuram a loja para atender a sua restrição e que também possa agradar o paladar”, conta ele. Juliana procura adequar a alimentação dos pacientes com ingrediente adaptados. “O ideal é ter uma vida normal e procurar orientação profissional para não ficar com carência de nutrientes”, evidencia a nutricionista.
Ainda que o alimento seja sem glúten, ele pode ser contaminado, se utilizados os mesmos utensílios e for preparado no mesmo forno da comida normal. Para a bancária Salete, o maior desafio da doença é a utilização separada das louças. “Eu levo o almoço para o trabalho e aqueço no microondas que todo mundo usa, Não é correto, mas não tenho outra opção”, pondera. Além disso, a bancária diz que toma a glutamina, relacionada com a enzima da transglutaminase, que é um dos alvos da doença celíaca. mas não vê efeito no seu corpo. Segundo o gastroentereologista, não há base científica que comprove a eficácia. “Nenhum estudo confirmou a quebra do glúten”, informa.
Quando sai, geralmente procura um restaurante que tenha arroz, salada e grelhados porque a probabilidade de conter farinha é muito baixo. Em eventos festivos, Salete diz que os amigos já se preocupam com a comida para ela. “O pessoal já se propõe a ir num restaurante em que eu possa comer”, conta. É o caso da amiga Rosalina. Para comemorar o aniversário de 60 anos, esco-lheu uma pizzaria na cidade que serve pizzas sem glúten a la carte. O pizzaiolo Dionezeti Gobeti, que há mais de 30 anos trabalha no ramo, afirma que a alta demanda fez com que o restaurante se adaptasse aos novos clientes. “Os turistas começaram a pedir pizza sem glúten”, constata. A massa é feita à base de farinha de arroz por uma fornecedora também celíaca de Bento, que as entrega semanalmente. Além disso, segundo Gobeti, a embalagem de alumínio especial evita a contaminação cruzada. A alta demanda dos clientes e a filha nutricionista e celíaca fizeram com que o dono, Airton Zorzi, adaptasse seu estabelecimento para atender a todos. “Famílias pararam de vir jantar porque tinha alguém que era celíaco e não podia comer”, relata. Pioneira na venda de pizzas sem glúten em Bento, atualmente, cerca de 50 discos são vendidos por mês.
Salete é cliente assídua do estabelecimento. Há 10 anos celíaca, a bancária diz que hoje há muito mais lojas especializadas que vendem produtos sem glúten na cidade e acredita que as pessoas estão mais conscientes. Já a estudante Janaíne percebe que há muita falta de informação nos restaurantes de Bento. “Se tu for perguntar sobre a doença, é capaz de nem saberem o que é”, desabafa. A nutricionista Juliana afirma que as percepções das pessoas são diferentes. “Para quem não é celíaco, há muita opção no mercado. Já para quem é, não existem tantas”, pondera. Segundo a vice-presidente da Acelbra, Ester, a mídia dá pouco destaque à condição. “Toda atenção que recebemos é seletiva”, alega. Os comerciantes Edegar e André já têm muitos clientes celíacos que procuram a loja em razão da dificuldade de adaptação do cardápio. “É importante termos essa troca de ideias”, aponta Edegar. O dono da pizzaria acredita que as pessoas estão se adaptando na cidade. “Temos funcionários que trabalham aqui e que também são intolerantes”, afirma Zorzi. Verônica, idealizadora do núcleo de celíacos em Bento, nota que as pessoas estão buscando mais informações e falando mais sobre o assunto. “Mas ainda temos um longo caminho para um esclarecimento maior”, confessa.
Fonte: Maria Antonia / Foto: Reprodução Internet