Foto: Drinque feito com jambu, planta típica do Norte do Brasil, servido no Trinca Bar e Vermuteria - Thales Hidequi/Thales Hidequi/Divulgação

Jabuticaba no lugar de alguma berry, limão-capeta como equivalente do siciliano e jambu para dar certa picância. Inusitado? Não para quem anda reparando nas cartas de drinques dos bares em todo país. O movimento de valorização dos ingredientes nacionais na coquetelaria se espalha, cada vez mais, e abre portas para muitos outros insumos substituírem o estrangeirismo das bebidas.

O curso de mudança, porém, não é repentino. Especialistas afirmam que agora há diversificação e evolução no mercado, com novos bares e consumidores mais interessados em coquetéis. A prática também se fortaleceu com o encontro dos profissionais veteranos — ainda ativos — com a nova geração, ansiosa para aprender.

Segundo a mixologista Néli Pereira, o momento é semelhante ao experimentado pela gastronomia há muitos anos. “Hoje, há casas específicas em culinária típica de diversas regiões do país”, diz ela, que também é precursora do uso de ingredientes nacionais na coquetelaria.

Em 2022, Néli lançou o livro “Da Botica ao Boteco – Plantas, Garrafadas e a Coquetelaria Brasileira” (Companhia de Mesa), que dá o panorama histórico de como bebidas com funções medicinais deixaram receituários e chegaram aos bares. A pesquisa para a obra foi acompanhada pela abertura do Espaço Zebra, no centro de São Paulo, o primeiro bar com uma carta inteira de drinques pensados a partir de insumos nativos do Brasil.

“Quando iniciei os estudos, em 2012, constatei que não havia locais usando apenas elementos brasileiros nas bebidas. Então, começamos a fazer coquetéis devido à pesquisa dos ingredientes e, desde a primeira carta do Zebra, escolhi apenas itens nacionais”, conta ela.

No bar, a mixologista destaca o uso não só de frutas, como também de cascas, raízes, plantas, bagas e ervas. “O principal ingrediente do meu coquetel é sempre brasileiro. Alguns dos que mais aproveito são o araçá, uvaia, jurubeba, casca de catuaba, paratudo, cogumelo yanomami, maxixe e jucá”, enumera.

Ela afirma que o cenário ainda está longe do uso ideal, já que muitos itens seguem camuflados em receitas. Mas um avanço começa a ser percebido. “Daqui a algum tempo, os ingredientes brasileiros serão usados como os estrangeiros e terão mais casas especializadas nisso, de fato”, diz.

NOVA GERAÇÃO

Novos nomes entraram no mercado e já entregam bons trabalhos, segundo o bartender Ale Bussab, sócio do Trinca Bar e Vermuteria. “A nova geração está fervendo, com a típica ansiedade que um jovem tem. Graças à internet, as pessoas conseguem acesso aos mais velhos e podem trocar experiências. Eles têm oportunidade de começar em bons bares e são ativos na pesquisa. Hoje, vejo pessoas com 30 anos —ou até menos— que fazem um ótimo trabalho”, diz ele.

Bussab é bartender há sete anos e também cria cartas inspiradas na cultura brasileira desde o início da trajetória. “Passei a ter influência mais regional quando comecei a viajar pela América Latina a perceber o quanto os outros países são ligados aos povos ancestrais. No Brasil, isso não é tão comum e tento levar a ideia para o Trinca, que tem toque brasileiro no conceito da casa e dos coquetéis”, explica.

Quem compartilha da mesma reflexão é Caio Baba, proprietário do recém-nascido Cantinho, um bar com referências brasileiras em todo o ambiente. De drinques autorais à decoração e trilha sonora, tudo tem referência ao Brasil e foi estrategicamente pensado. Aos 30 anos, ele se encaixa na parcela do público jovem que abriu um bar especializado em coquetéis e afirma que a nova geração é mesmo interessada.

“A base dos nossos drinques foi criada por um bartender de 21 anos, jovem, mas com muita técnica e conceito por trás. Evitamos usar ingredientes que alterem o sabor das bases, para que elas fiquem mais evidentes. Fechamos a concepção de reforçar insumos brasileiros com uma pesquisa de sabores”, afirma Baba.

Segundo Néli, a mixologista Espaço Zebra, os jovens têm onde se inspirar e são mais ligados às brasilidades. “Quando a velha guarda começou na coqueteleira brasileira, não havia muito para quem olhar. Tínhamos o Derivan, mas era — provavelmente — o único. Porém, hoje, já servimos de referência para a geração nova”, diz.

INDÚSTRIA E INTERESSE

Não só os ingredientes nacionais dão liga ao drinque. O tipo bebida alcoólica escolhida também entrou na era de valorização. Segundo a bartender e barista Mari Mesquita, a indústria nacional de destilados está mais desenvolvida. É possível encontrar bons produtos que vão além da cachaça, diz ela. Outro ponto que compõe o cenário é o interesse dos consumidores por um coquetel.

“Muitas pessoas nem considerariam sair de casa para tomar batidinhas e coquetéis de boteco. Só de ter a inserção da cachaça nas cartas de alta coquetelaria, já é um indicativo forte do caminho que estamos percorrendo”, diz Mesquita. Ela, que viaja pelo país prestando consultoria em bares, completa que o uso dos ingredientes também varia de acordo com cada bioma.

“Alguns insumos ficam mais restritos aos locais que eles dão, como o mate nas Pampas e o pequi no Cerrado. Embora seja possível encontrá-los em outras regiões, é comum ter mais receitas nos locais em que brotam”, finaliza.

Fonte: Folha de São Paulo