Compreender os hábitos de vida de animais que há muito tempo desapareceram de nosso planeta é um desafio que intriga paleontólogos há séculos. Isso porque esses cientistas têm nos ossos fossilizados sua única evidência para reconstruir a história de vida desses seres do passado.
Isso não impediu uma equipe de pesquisadores gaúchos de investigar a fundo os hábitos alimentares de um animal extinto há mais de 230 milhões de anos. Usando tecnologias avançadas e a criatividade, especialistas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) reconstruíram o hábito alimentar da espécie Proterochampsa nodosa, um réptil que viveu no Rio Grande do Sul há cerca de 230 milhões de anos. Descoberto há mais de 40 anos no município de Candelária, esta é a primeira vez que o animal é submetido a análises biomecânicas, em um estudo inédito.
“Os proterocâmpsios são animais curiosos, porque seu crânio lembra muito o dos atuais jacarés e crocodilos, apesar de não terem nenhum tipo de parentesco evolutivo” explica Daniel Simão de Oliveira, que liderou o estudo. “O interessante, contudo, é que eles adquiriram essa morfologia antes de os primeiros crocodilos aparecerem em nosso planeta”.
Foi essa aparente semelhança que inspirou o estudo publicado no periódico norte-americano The Anatomical Record. No trabalho, os cientistas reconstruíram a morfologia do crânio e da mandíbula do animal, e identificaram os pontos onde a musculatura se alojava. Isso permitiu que eles estimassem, músculo a músculo, a força com a qual o animal era capaz de morder suas presas.
“Foi um processo longo”, explica Daniel. “O primeiro passo envolveu tomografar os ossos do crânio do animal, e isolar os elementos digitalmente, para criar um modelo virtual do crânio. Foi a partir desse modelo que pudemos então reconstruir a musculatura do animal”.
A partir dos modelos gerados, os pesquisadores estudaram a mordida do animal utilizando softwares de simulação virtual. Com base em tecnologias empregadas na Engenharia Mecânica, os cientistas puderam, pela primeira vez, analisar como a ação dos músculos impactava o crânio da espécie.
“Foi realizada uma análise biomecânica do crânio, usando técnicas numéricas”, explica o professor Tiago dos Santos, do Departamento de Engenharia Mecânica da UFSM, que participou do estudo. “Aplicando virtualmente as forças dos músculos sobre os ossos da mandíbula, fomos capazes de estimar os esforços mecânicos experimentados pela estrutura óssea do animal, em diversos cenários de mordida”.
Entre as descobertas, os cientistas desvendaram que o animal era capaz de desferir mordidas poderosas, comparáveis a dos aligátores modernos.
“Esse olhar multidisciplinar é um aspecto interessante do nosso trabalho. Unindo especialistas de diferentes áreas, da Biologia à Engenharia, conseguimos ver o Proterochampsa de uma forma que ninguém havia visto antes”, avalia o paleontólogo Flávio Pretto, do Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica (Cappa) da UFSM. “Em uma época em que os dinossauros estavam recém surgindo em nosso planeta, já tínhamos um animal capaz de subjugar suas presas com uma mordida impressionante”.
Comparando os modelos a animais viventes com morfologias similares, como o aligátor americano e o gavial-da-malásia, os pesquisadores compararam a performance de suas mordidas.
“A evolução por vezes gera animais com morfologias similares” explica o professor Felipe Pinheiro, da Unipampa. “É um fenômeno que conhecemos como Convergência Evolutiva, que frequentemente vemos no registro fóssil. A pergunta por trás disso é: será que por terem a mesma forma, esses animais se comportavam de maneira similar?”.
A resposta é que, ainda que fossem capazes de gerar forças de mordida poderosas, os proterocâmpsios sobrecarregavam sua mandíbula com esforços mecânicos consideráveis – muito maior que o sofrido por animais viventes – o que aponta que talvez esse não fosse um hábito usual daqueles animais.
“Talvez o Proterochampsa guardasse sua mordida poderosa para ocasiões especiais, de modo a poupar sua estrutura de eventuais lesões. Provavelmente fosse um animal generalista, e caçasse desde presas pequenas, até animais maiores, da mesma forma que fazem os jacarés atuais” conclui Daniel.
“Essa é a beleza e a dor-de-cabeça da Paleontologia” brinca Flávio. “Enquanto os zoólogos podem observar o comportamento dos animais que estudam diretamente na natureza, na Paleontologia, precisamos dar uma volta um pouquinho mais longa, e usar da ciência e da criatividade que temos à disposição para tentar reconstruir o passado remoto da melhor maneira possível. É um desafio definitivamente instigante”.
Equipe
Daniel Simão de Oliveira – Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade Animal, Universidade Federal de Santa Maria. Tiago dos Santos – Departamento de Engenharia Mecânica, Universidade Federal de Santa Maria Felipe Lima Pinheiro – Laboratório de Paleobiologia, Universidade Federal do Pampa Flávio Augusto Pretto – Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia (CAPPA), Universidade Federal de Santa Maria